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O Paramārthasāra de Abhinavagupta: Estrofes 8 a 11 - pura
Tradução pura
Introdução
O Paramārthasāra continua com mais quatro estrofes. Esse é o terceiro conjunto de estrofes, que é composto de 4 das 105 estrofes que constituem a obra como um todo.
Obviamente, também inserirei as estrofes originais sobre as quais Yogarāja está comentando. Escreverei várias notas para que esse livro fique tão compreensível quanto possível.
Leia o Paramārthasāra e experimente Supremo Ānanda ou Divina Alegria, querido Śiva.
Este é um documento de "tradução pura", isto é, não haverá nenhum Sânscrito original, mas, às vezes, existirá uma quantidade mínima de Sânscrito transliterado na própria tradução do texto. Obviamente, não haverá nenhuma tradução palavra por palavra. De qualquer maneira, haverá Sânscrito transliterado nas notas explicativas. Se você for uma pessoa cega usando um leitor de tela e não quiser ler as notas, ou simplesmente quiser pular as notas, clique no respectivo "Pular as notas" para continuar lendo o texto.
Importante: Tudo o que está entre parênteses e em itálico dentro da tradução foi agregado por mim para completar o sentido de uma determinada frase ou oração. Por sua vez, tudo o que está dentro de um duplo hífen (-- ... --) constitui informação esclarecedora adicional também agregada por mim.
Obrigado a Paulo & Claudio que traduziram este documento do inglês/espanhol para o português brasileiro.
Estrofe 8
Dessa forma, se, por meio de raciocínio e escrituras reveladas, declara-se que esse Ser de todos é a essência da manifestação universal, a Mais Alta Realidade que é unicamente Consciência Pura (e) aparece como tudo em todos os lugares como consequência (de que Ele é) Consciência Pura, (então,) por que, inclusive em um pedaço de argila, etc. —já que não são distintos (Dele Mesmo)—, Ele não é percebido como o próprio Ser? Ou, se se admitir que (esse pedaço de argila, etc., tem o Ser como essência, então) essa diferença entre animado (e) inanimado, que é evidente, deixa de ser adequada --não concorda com o ensinamento de que tudo é o Ser--. E, (na ausência dessa diferença entre animado e inanimado,) como, (então,) essa vida comum das pessoas, que é baseada em animado (e) inanimado, existiria? (Para responder a essa pergunta, Abhinavagupta) disse assim1 :
Assim como inclusive a invisível sombra da terra se torna visível quando permanece sobre o disco da lua, da mesma forma, este onipresente Ser (se torna perceptível) quando (se reflete) no espelho do intelecto recorrendo aos objetos dos sentidos||8||
Embora a sombra da terra, que ocupa um lugar no espaço, não seja percebida vagando por todos os lugares, ainda assim, ela sai à luz --aparece-- no momento de um eclipse planetário --lunar-- quando permanece sobre a forma da lua (e) é percebida como "essa sombra da terra". De outro modo, embora esteja --embora exista--, (é) como se não estivesse, (permanecendo invisível) entre toda a multidão de estrelas.
Da mesma forma, mesmo nesse contexto, embora esse Ser, que está dentro de tudo, seja diretamente perceptível como a única natureza essencial através da própria experiência, (Ele) não é percebido por todos dessa forma2 .
No entanto, quando, no momento do (Seu) aparecimento como o cognoscível --o objeto-- (refletido) no espelho do intelecto —ou seja, no espelho de pratibhā— dos experimentadores do corpo sutil, Aquele cuja esfera ou campo de ação é a consciência do Eu --ou seja, o próprio Ser-- se torna assim: "Eu ouço", apropriando-se de coisas (tais como) sons, etc., então, (o Ser) que permanece inclusive em um pedaço de argila, etc., como a natureza essencial do conhecedor (desse objeto cognoscível --um pedaço de argila, etc.--) torna-se evidente. Nesse mesmo momento, o próprio Ser torna-se visível e Aquele que é a única natureza (essencial) na própria experiência é percebido por todos. (No entanto,) visto que está repleto de excessiva escuridão em um pedaço de argila, etc., ainda que Ele esteja presente, aparece como se estivesse ausente, assim como a sombra da terra no espaço3 .
Dessa forma, esse Afortunado, no grupo de coisas existentes —embora (tal grupo) seja idêntico a Ele —, (toma) inclusive certas porções de objetos cognoscíveis cuja essência é o corpo sutil (e) que estão respingados com o elixir do estado de eu --ego--, (e) torna(-as) "conhecedores" por meio da (Sua) māyāśakti. (Depois, Ele toma) outras (porções de objetos cognoscíveis) (e) torna(-as) objetos. Baseando-se nisso, essa vida comum (repleta de) dualidade, cuja essência é a correspondente diferença entre animado (e) inanimado, torna-se firmemente estabelecida, certamente.
Devido a isso, pedaços de argila, etc., (são) inanimados, já que são objetos cognoscíveis, (e) o experimentador dotado de corpo sutil (é) animado, já que é um conhecedor.
No entanto, na verdade, "a vida comum baseada em animado e inanimado não é (válida) com referência ao Senhor Supremo4 "||8||
1 Agora, levanta-se uma objeção: Se tudo é o Grande Senhor, ou seja, Consciência ou Cit, então, os objetos inanimados (ex.: um pedaço de argila), sendo Acit ou desprovidos de Consciência, parecem provar que essa afirmação não é verdadeira, isto é, que tudo não é realmente o Grande Senhor ou Cit. Porque, se tudo for Consciência ou Cit, então, tudo estaria repleto Dela, ou seja, de Vida... assim, o que esses objetos "inertes, inanimados, sem vida" estão fazendo aqui, já que não deveriam existir como tal?. E, se se diz que esses objetos inanimados também são Consciência, então estão cheios de Vida e, portanto, não podem ser "inanimados", e sim "animados". Nesse caso, a diferença entre inanimado e animado cessaria e isso causaria o fim da vida comum, que é baseada na dualidade de animado e inanimado.
Essa pergunta "aparentemente" inocente disparará uma sábia resposta que aparece como a oitava estrofe escrita pelo próprio Abhinavagupta. Como os ensinamentos contidos na estrofe e no comentário de Yogarāja são a "chave" para a libertação final da escravidão inexistente, preste total atenção à instrução que está a ponto de ser dada a você.
2 Assim como a sombra da terra existe constantemente mas só é vista quando permanece sobre o disco da lua, da mesma forma, este Grande Senhor é detectado quando o universo aparece. Quando o universo não está manifesto (Aham ou verdadeiro "Eu") está sozinho em Sua própria Glória, Ele não é detectado, assim como a sombra da terra não é detectada quando permanece invisível entre toda a multidão de estrelas. Esse Ser está dentro de tudo e é diretamente perceptível como a única natureza essencial através da própria experiência, mas nem todos o percebem dessa forma. Apenas o suprabuddha (o que está perfeitamente desperto) é capaz de percebê-lo em Sua Glória Plena a todo momento. O prabuddha ou parcialmente desperto o detecta apenas no começo e no final dos três estados comuns de consciência (vigília, sono e sono profundo). Isso foi explicado pelo sábio Kṣemarāja no Spandanirṇaya I.17. O resto das pessoas (os não despertos), apesar de serem o Grande Senhor, não têm nenhuma verdadeira percepção Dele tal como é essencialmente, o que provoca todos os problemas nas suas vidas. Todas essas coisas serão esclarecidas pelas próximas notas explicativas.
3 No sistema Trika, Śāktopāya é o meio que usa o ponto de vista de Śakti (o Poder do Grande Senhor, o Poder de Śiva). Quando você utiliza esse meio para se dar conta do Ser, aprende a permanecer nos "intervalos" entre duas coisas (os pensamentos, dois objetos externos, etc.). Por exemplo, se você estiver observando o objeto A, o universo é exatamente aquilo, isto é, "o objeto A", para Śiva (Você!). Depois, você move a atenção para o objeto B e, quando finalmente a concentra novamente no objeto B, o objeto B é o universo para Você. No entanto, no "intervalo" entre se concentrar no objeto A e depois no B, não existe NENHUM universo, ou seja, Śiva (o verdadeiro "Eu") permanece completamente sozinho, desprovido do Isto (o universo). Em Śāktopāya, você aprende a concentrar a atenção nesses intervalos, e não nos próprios objetos como pessoas comuns constantemente fazem. Quando você começa a fazer isso, deixa de ser uma pessoa comum e vira um yogī. Então, essa é a diferença entre yogī-s e pessoas comuns.
À medida que você se aprofunda na concentração nos intervalos dessa forma, aprende a permanecer concentrado no seu Ser interior (onde não há nenhum universo). Essa realização se chama Ātmavyāpti ou "uma penetração (vyāpti) no Ser (Ātmā)". Obviamente, estou "super-simplificando" a explicação de todos os processos ou a minha exposição seria extremamente longa. A palavra Ātmā (um substantivo masculino derivado do prātipadika --forma bruta de um substantivo-- Ātman) deve ser escrita "Ātma" quando utilizada em compostos. É por isso que escrevi "Ātmavyāpti" e não "Ātmāvyāpti". Então, quando você alcança Ātmavyāpti, deu-se conta do seu próprio Ser interior... mas não consegue perceber esse Ser fora também. Em suma, você ainda está em escravidão, não possui a Liberdade do Grande Senhor, pois quando sai dessa absorção interna no ponto médio (no intervalo de duas percepções... percepção do objeto A e percepção do objeto B), para de perceber o Ser e sente que o universo é "uma obstrução". Posteriormente, como esse universo parece ser uma obstrução para você, você toma a decisão de fugir desse universo, do mundo, e vai a uma montanha ou floresta... mas, ali, você continua a encontrar o universo também! Em outras palavras, na cidade, você encontrava o universo "como uma cidade" e, em uma montanha ou floresta, encontra o universo "como uma montanha" ou "como uma floresta". Então, você pensa: "É a mesma pedra no meu sapato, mas com um aspecto diferente". Você tem essa atitude porque é ignorante ao extremo. Permita-me dizer que existem também várias escolas filosóficas na que chegaram à conclusão de que o universo é uma obstrução em relação à sua iluminação espiritual. Rejeito todas essas escolas, porque elas carecem de qualquer tipo de Graça proveniente do Senhor Śiva! São tão significativas quanto poeira levada pelo vento!
De qualquer forma, quando o Grande Senhor verte a Sua Graça em alguém que alcançou Ātmavyāpti, essa pessoa é conduzida ao meio conhecido como Śāmbhavopāya, onde há total ausência de pensamentos, ou seja, não há nenhum tipo de suporte para ele. Em Śāktopāya, o suporte era os intervalos entre duas percepções (percepção do objeto A e percepção do objeto B), mas, em Śāmbhavopāya, você permanece SOMENTE no estado sem pensamentos. Esse é um estado anterior à libertação final. Em Śāmbhavopāya, você ainda não é Livre como o Senhor Śiva, mas está muito próximo a essa grande realização. Quando você obtém a Sua Liberdade, isso é Śivavyāpti ou "uma penetração (vyāpti) em Śiva --a Mais Alta Realidade--". Isso é libertação final ou iluminação espiritual de acordo com o sistema Trika. Para ir da mera Ātmavyāpti à grande Śivavyāpti, Śiva terá que derramar a Sua Graça em você por meio dos seus ensinamentos. Ele está fazendo isso agora mesmo por meio do Paramārthasāra. O que Abhinavagupta e Yogarāja (duas personificações do Senhor Śiva) estavam dizendo é isso:
Quando você está em Ātmavyāpti, quando está plenamente consciente do seu Ser interior ou "Eu", não há nenhum universo aqui. Você mora nos intervalos entre duas percepções (entre as percepções do objeto A e do objeto B no exemplo acima)... mas, quando o universo aparece de novo, ou seja, quando existe a percepção de outro objeto, você deixa de perceber o Ser nesse momento e tem que esperar o próximo intervalo para recuperar Ātmavyāpti. Como não se pode viver em constante Ātmavyāpti já que cedo ou tarde o universo vai aparecer mais uma vez na forma de um objeto externo, um pensamento, etc., deve aprender a atitude correta para lidar com o universo. Os yogī-s torpes que pensam que o universo é uma obstrução para os seus transes estão completamente equivocados. Na realidade, o universo está aqui para ajudar você a reconhecer o seu Estado de Śiva, o seu Estado como o Grande Senhor. Quando Śiva está sozinho (ex.: nos intervalos entre duas percepções), não pode se dar conta da Sua Glória, da Sua Grandeza, porque Ele ocupa tudo. Então, o Seu Poder, a Sua Śakti, manifesta o universo para que Ele descubra a Sua Glória e Grandeza outra vez, assim como você se dá conta de que "a terra realmente tem uma sombra", à medida que ela cruza o disco da lua durante um eclipse. Da mesma forma, quando Śiva está sozinho, a Sua Glória é como a sombra da terra viajando através da multidão de estrelas, onde permanece invisível. Mas, quando Śakti coloca o universo diante de Śiva, Ele detecta a Sua Glória da mesma maneira em que a mãe terra poderia detectar que ela tem uma sombra quando essa sombra permanece sobre a forma da lua em um eclipse. Portanto, o universo não está "obstruindo Śiva" mas sim ajudando-o a dar-se conta da Sua Grandeza. Quando Ele se dá conta da Sua Glória, isso é libertação final, e não há nada mais que você precise fazer.
O sábio Yogarāja expande o ensinamento dado por Abhinavagupta dizendo que o Ser se faz evidente quando se torna assim: "Eu ouço". Em outras palavras, a presença do universo como sons, por exemplo, faz o Ser (o "Eu") dizer isso: "Eu ouço sons". Se você analisar essa frase, vai perceber como o "Eu" é revelado ali: "Eu ouço sons". Da mesma forma, todo o resto de percepções geradas pelo universo está apenas se revelando ao Grande Senhor (Você!). Veja: "Eu estou feliz", "Eu estou sofrendo", "Eu estou vendo TV", "Eu estou desmotivado", "Eu tenho um corpo físico", "Eu não tenho dinheiro", "Eu sou rico", "Eu estou vivendo", "Eu estou morrendo", etc. Através de todas essas percepções, o "Eu" real, o Ser, Śiva, está plenamente revelado. Os objetos e experiências geradas pela manifestação universal estão atuando como a lua atua em relação à terra, isto é, revelam a Glória de Śiva assim como a lua revela a sombra da terra. O universo nunca é uma obstrução para Śiva, e é por isso que Ele se chama Arodhya ou o Desobstruído. Porque, em todas as percepções, sejam elas agradáveis, neutras ou inclusive desagradáveis, o verdadeiro "Eu" ou Ser está completamente revelado!
Quando Śiva pode ver a Sua Glória refletida nos objetos que está percebendo e experiências que está tendo, isso é como a sombra da terra permanecendo sobre o disco da lua, ou seja, a sombra da terra é plenamente percebida como tal. Da mesma forma, uma pessoa que se deu conta do seu Estado de Śiva, a sua identidade com o Senhor Śiva, é como a mãe terra olhando a sua própria sombra sobre a lua. E, quando uma pessoa não tem nenhuma percepção da sua identidade com o Senhor Śiva, é como a mãe terra olhando a multidão de estrelas sem perceber que tem uma "sombra". Os objetos inertes, como um pedaço de argila e coisas similares, estão na mesma condição que essas pessoas não despertas. É por isso que o Grande Senhor parece estar ausente em um pedaço de argila, etc., enquanto parece estar presente em uma pessoa que se deu conta do Ser. Na verdade, Ele está "sempre" presente, mas não percebe a própria presença até que "uma lua" seja colocada na frente Dele, por assim dizer. Nesse sentido, a presença do universo não está obstruindo, mas sim o contrário, está ajudando-o a ver a Sua própria "sombra", a Sua Glória e Grandeza.
Nesse Seu grande Jogo, somente os seres dotados de intelecto podem se dar conta do seu Estado de Śiva, ou seja, têm uma "lua" na qual podem ver a "sombra da terra". Em outras palavras, podem ver o Divino refletido no espelho dos seus intelectos, no espelho de pratibhā --a Consciência criativa também denominada "consciência do Eu", mas, nesse contexto, aparecendo no campo da limitação como mero "intelecto"--. O corpo sutil dos seres humanos é chamado de "puryaṣṭaka" no sistema Trika, isto é, "a cidade (puri) dos oito (aṣṭaka)". O que são os oito? São: Intelecto, ego, mente (tattva-s 14 a 16) junto com os cinco Tanmātra-s ou elementos sutis (tattva-s 27 a 31) --Para mais informação, ver Tabela de Tattvas--. O corpo físico não é mencionado porque está tacitamente incluído no corpo sutil, já que emana a partir dos próprios Tanmātra-s. O mesmo exemplo da sombra da terra que cruza o disco da lua durante um eclipse pode ser usado para explicar porque existem objetos inanimados. Os objetos inanimados também são Śiva, mas, por estarem desprovidos de uma "lua" ou intelecto na qual podem ver o seu Estado de Śiva, permanecem como objetos inertes, exatamente como a sombra da terra permanece invisível quando viaja através da escuridão do espaço. Tais objetos inertes estão repletos de tamas (lit. escuridão). Por "tamas", o comentarista está se referindo à mais bruta modalidade de Prakṛti.
Os ensinamentos passados a você por Abhinavagupta e Yogarāja, junto com a minha detalhada explicação, são uma encarnação da Sua Graça. Se você pensava que o universo era uma obstrução, uma pedra no seu sapato, esses ensinamentos são o meio para que você possa escapar da escravidão inexistente na qual vive devido à sua errônea atitude para com o universo manifestado pelo Seu próprio Poder. Esses ensinamentos conduzem diretamente à libertação final, a qual está sempre marcada pela obtenção do Seu Svātantrya ou Liberdade Absoluta.
4 A diferença entre "seres animados" e "seres inanimados" é verdadeira apenas no caso dos seres limitados, e não no caso do Senhor Supremo. Para esse Senhor, todas essas coisas são "cognoscíveis" (inclusive os conhecedores ou pramātā-s dotados de corpo sutil). É por isso que Ele se chama Conhecedor Supremo ou Parapramātā, para marcar a diferença entre Ele e o resto dos meros conhecedores. Toda a massa de cognoscíveis que são um com Ele Mesmo é dividida por Ele em duas seções por meio da sua māyāśakti. Aqui, o termo "māyāśakti" não tem nada a ver com o Māyātattva (a sexta categoria do processo de manifestação universal). Māyāśakti é simplesmente o Poder do Senhor que lhe permite gerar diferenças.
Uma dessas duas seções, por estar dotada de corpos sutis, está respingada de "estado de eu" ou ego (limitado sentido de eu) e, dessa forma, tal seção é transformada em "os conhecedores". A segunda seção, por não estar dotada de corpos sutis, carece de estado de eu ou ego e, portanto, converte-se em objetos inanimados. Tudo isso é levado a cabo por Ele através do Seu Poder. Mas, do ponto de vista do Grande Senhor, tanto animado quando inanimado são a mesma coisa. É somente do ponto de vista desses "conhecedores" que há seres animados e objetos inanimados, e, dessa forma, a vida comum pode continuar existindo como tal. Sem essa dualidade baseada em animado e inanimado, não existiria nenhuma vida comum aqui. De qualquer forma, como eu lhe disse antes, isso não é válido no caso do Senhor. É por isso que a objeção levantada na introdução ao comentário sobre esta estrofe também não é válida no caso do Senhor Śiva, já que tanto animado quanto inanimado são apenas a Sua Criação feita a partir da Sua Essência.
Estrofe 9
Uma objeção: Se, como não existe nenhuma diferença (entre os experimentadores/conhecedores e o Grande Senhor), ocorre o aparecimento do próprio Ser no intelecto de todos os experimentadores/conhecedores, então por que não são todos eles conhecedores do próprio Ser? Ou ainda, que eles não se tornem conhecedores Dele devido à (mesma) ausência de diferença (entre eles e o Grande Senhor)! --em suma, todos esses experimentadores/conhecedores deveriam ser conhecedores do Ser ou então nenhum deveria ser conhecedor do Ser, devido à inerente unidade entre eles e o Senhor Śiva--. No entanto: "(1) Algumas pessoas, inclusive no estado de Saṁsāra --lit. Transmigração, isto é, enquanto mantêm um corpo físico--, (estão) libertadas em vida, repletas de onisciência (e) onipotência, devido ao seu conhecimento do Ser; (2) e algumas pessoas, por serem aptas (a receber) conhecimento sobre o próprio Ser, são vistas com um intenso desejo de avançar (em espiritualidade); (3) (enquanto) outras, por estarem desprovidas de conhecimento do seu Ser, (estão) certamente transmigrando --de um corpo a outro, de um pensamento a outro--, atadas pelas correntes das boas e más ações ocasionadas por mérito (e) demérito". (Então,) como esse (fato) concorda com os (ensinamentos dados na estrofe anterior)? Dessa forma, tendo todos (esses argumentos) em conta, (Abhinavagupta) explica (na estrofe seguinte) que o Śaktipāta --lit. descida de Poder, isto é, outorgamento de Graça-- que provém do Senhor Supremo não tem restrições --é completamente livre--1 :
Assim como um rosto brilha em um espelho desprovido de sujeira, da mesma forma, esse brilhante Senhor aparece cintilantemente no tattva ou princípio de um intelecto que é impecável devido à descida de Poder levada a cabo por Śiva||9||
(A frase "Ādarśe malarahite yadvadvadanaṁ vibhāti" na estrofe significa:) Assim como um rosto (refletido) em um espelho que esteja livre de sujeira brilha acompanhado por um grupo de peculiaridades (tais como) "a sua forma é idêntica à real", etc. — (em outras palavras,) não há nenhum lugar ou parte (pertencente a esse rosto) que um espelho completamente claro não capture.
Mas, em um espelho sujo, um rosto, inclusive se for preeminentemente único, aparece como o oposto, já que (o espelho) não está limpo. Um (espelho) sujo não é nem capaz de capturar as peculiaridades (especiais) desse (rosto). Pelo contrário, uma pessoa cujo rosto apareça (refletido) nesse (espelho sujo), ao ver (que o seu) rosto (parece) de outra forma —(isto é,) dotado de impureza, etc.—, se sentiria envergonhada (e diria:) "Meu rosto (está) distorcido ".
Da mesma forma, (Śaktipāta é) uma descida dessa Śakti ou Poder —uma descarga dos Seus raios— de Śiva —do próprio Ser—, a qual --a Śakti ou Poder-- é conhecida como Graça. Por meio desse (Śaktipāta ou descida de Poder), no caso de alguns experimentadores/conhecedores que estão atravessando o seu último nascimento, o Bhārūpa --o brilhante Senhor-- —lit. "Alguém cuja forma ou natureza (é) Bhās ou Brilho "—, que é próprio Ser (e) está dotado de um grupo de atributos tão grandes como a onisciência, etc., aparece fulgurantemente de uma vez no extremamente limpo espelho dos (seus) intelectos --de pratibhā ou a Consciência criativa transformada em intelecto--, o qual --o espelho dos seus intelectos-- se tornou impecável devido à remoção de (todas) as impressões residuais das impurezas (chamadas) Āṇava, Māyīya (e) Kārma. Como resultado, alguns deles, por causa de um desdobramento da sua natureza essencial que é o seu próprio Ser, ainda que caídos no meio do Saṁsāra --Transmigração repleta de miséria--, (vivem) como seres libertados e estão dotados de superioridade2 .
(Mas,) no caso de outros, através do poder de ocultação (pertencente ao) Senhor Supremo, o Ser, embora tenha uma forma ou natureza brilhante, devido à sujeira, (Ele,) ainda que brilhando, (aparece) como carente de brilho no tattva ou princípio do intelecto que está completamente nublado pelas impurezas (denominadas) Āṇava, Māyīya (e) Kārma. Como consequência disso, eles são conhecidos como seres transmigratórios (ou) paśu-s --lit. animais--. Inclusive outros, por meio de ambos os poderes --os poderes de Graça e ocultação--, (tornam-se) experimentadores ou conhecedores providos de um intenso desejo de avançar (de um ponto de vista espiritual)3 .
Dessa forma, através de diferentes graus como forte, suave, mais suave, etc., (a presença) da diversidade de Śaktipāta-s ou descidas de Poder deve ser notada (como existente) em todos os lugares.
Aqui --nesse contexto--, o sacrifício do cavalo, etc., ou a recitação de um mantra, a meditação, etc., (ou) qualquer outra ação de qualquer tipo, todas elas ocorrendo dentro (do reino) de Māyā --o sexto tattva ou princípio-- (e, consequentemente,) sob o domínio de niyatiśakti --o poder que gera restrição--, não são causa de libertação do Ser --isto é, de Si Mesmo!--, já que, no Seu caso, —devido a Ele estar além de Māyā— um vastu ou realidade que é predominantemente dual não é apto para cumprir ou obter isso.
Esse (mesmo ensinamento foi dado na) Bhagavadgītā:
"Eu não (posso ser visto da maneira como você me tem visto,) através do (estudo dos) Veda-s, (ou) pela (execução de) austeridade, (ou) por meio de caridade, (ou) por (meio da execução de) um sacrifício."
Portanto, nesse contexto, para aqueles cujos intelectos são aptos, (existe) apenas uma causa natural (de Libertação): A Graça do Senhor Supremo4 .
Esse (mesmo ensinamento) foi declarado (na seguinte estrofe:)
"Na porção Śaktipāta --descida de Poder-- do Mestre ou Īśitā, o intelecto (é) o que torna conhecida a Liberdade (do Senhor, e,) por ser considerado --lit. farejado-- como (possuidor de) poder ou capacidade de ação causal, não requer (mais) nada --não requer nenhuma outra causa além de si mesmo para revelar a Luz do Mestre--."
No entanto, em relação aos experimentadores o conhecedores (conhecidos como) paśu-s ou seres limitados --lit. animais--, o poder de ocultação pertencente ao Senhor Supremo (é) certamente a causa da (sua) Transmigração (de um corpo a outro, de um pensamento a outro, etc.). Em consequência, esses (seres), já que não há revelação da sua natureza essencial, estão ocupados em boas (e) más ações, (e,) participando das experiências de prazer, dor, etc., eles transmigram aqui --neste universo-- de novo e de novo.
Por essa razão, inclusive no próprio Ser, que é comum a (todos) os experimentadores ou conhecedores, por ter uma natureza (tanto) cheia de Luz (como) desprovida de Luz, (existem) dois poderes: (1) Graça (ou Revelação da própria natureza essencial) (e) (2) ocultação (dessa mesma natureza essencial). Esses (dois poderes) causam as divisões (chamadas) Libertação (e) escravidão5 .
A mesma coisa foi estabelecida (por Avadhūtasiddhapāda:)
"Uma śakti ou poder da infinita Śakti ata ininterruptamente --sem obstrução-- o indivíduo limitado pelas redes da existência transmigratória, e a outra --o poder da Graça--, cortando todas as cordas com a espada do Conhecimento, dirige uma pessoa em direção à Libertação total."
||9||
1 A objeção é claramente formulada e é baseada nos ensinamentos da 8a estrofe: "Se todos os conhecedores —os seres dotados de intelecto— são inerentemente Śiva, por que parecem ser distintos, espiritualmente falando?". Essa é a essência da objeção. Depois, o contestador desenvolve a sua dúvida especificando que eles deveriam parecer iguais, isto é, todos eles deveriam ser ou pessoas libertadas ou pessoas atadas, e NÃO uma mistura: 1) pessoas libertadas, 2) pessoas libertadas/atadas e 3) pessoas atadas.
A primeira categoria é composta por jīvanmukta-s ou sábios que alcançaram libertação em vida. Em suma, mantiveram os seus corpos físicos inclusive depois de ter obtido libertação final. Existe outra categoria que o contestador omitiu: Os videhamukta-s ou os que abandonam os corpos físicos quando se libertam plenamente da escravidão. Obviamente, a tarefa de encontrar um verdadeiro jīvanmukta é mais difícil do que buscar uma agulha em um palheiro. E esse jīvanmukta que é tão difícil de encontrar poderia ser um Guru ou meramente alguém que está libertado mas não é um Guru (nem todas as pessoas libertadas serão Guru-s). Sim, como é óbvio, a presença de tantos Guru-s no planeta mostra o fato de que a maioria deles (99%, sendo otimista) é falsa. Como a grande maioria dos aspirantes não está qualificada para distinguir um verdadeiro Guru de um falso, serão frequentemente enganados por essa massa de idiotas denominados "falsos Guru-s". O que quero dizer por isso? Por exemplo, uma situação simples: Um falso Guru diz a um aspirante que ele é um estudioso de sânscrito bem versado nas escrituras, mas, como o aspirante geralmente não conhece nada sobre sânscrito, não pode verificar se o Guru está falando a verdade ou mentindo. Bem, esse tópico é longo, realmente. Expliquei tudo sobre "falsos Guru-s" bem extensamente no Blog.
Agora, com relação aos verdadeiros Guru-s, segundo Abhinavagupta, a escolha de um Guru deveria ser feita seguindo estas diretrizes, na ordem em que são dadas:
- Um Guru que tenha tanto uma experiência direta do seu próprio Ser quanto um sólido conhecimento sobre as escrituras.
- Um Guru que tenha um sólido conhecimentos sobre as escrituras.
- Um Guru que tenha uma direta experiência do seu próprio ser.
O Guru ideal é uma pessoa que se deu conta do Ser e, ao mesmo tempo, é dotado de erudição, mas, se o aspirante não puder encontrar esse tipo de Mestre, ele deveria ir em busca de um erudito, ou seja, de um Guru que tenha um conhecimento sólido sobre as escrituras. E, se isso também não for possível, ele deveria ir em busca de uma pessoa que tenha dado conta do Ser mas que não tenha um conhecimento sólido sobre as escrituras. Essa é a ordem a ser seguida segundo Abhinavagupta, o maior Mestre de Trika. As razões para que ele formulasse as coisas nessa ordem ficam claras quando se estudam os dois aspectos da impureza primordial (o conhecido Āṇavamala). Expliquei no Blog o assunto denominado Āṇavamala em "termos bem simples" (para aspirantes iniciantes e intermediários) por meio da série de artigos sobre ignorância espiritual que começa com este: Ignorância espiritual - Parte 1. Depois de ler esses artigos, você vai entender por que Abhinavagupta ordeno a lista dessa forma.
A segunda categoria de pessoas especificada por quem levantou a objeção é composta por aspirantes espirituais que estão a caminho da libertação final, desde meros principiantes em espiritualidade até discípulos muito avançados a ponto de se tornarem completamente libertados. Existe uma imensa porção de aspirantes nessa categoria que simplesmente segue falsos Guru-s, já que essa praga é mundial. Tenho que dizer que é triste ver como tantas pessoas são enganadas por esses sem-vergonha, mas não tem jeito, pois essa é a natureza do Jogo denominado: "Quero alcançar libertação final". No processo de conseguir isso, há muitos obstáculos e o aspirante deve superar todos eles se quiser ter sucesso. Esse é um dos motivos pelos quais as pessoas libertadas são frequentemente chamadas: Vīra-s ou Heróis. É porque tiveram que superar todos esses obstáculos (incluindo a praga mundial conhecida como "falsos Guru-s") e, por meio da Sua Graça, finalmente obtiveram a recompensa para todos os seus esforços hercúleos.
A terceira categoria é formada por pessoas comuns que não vão a nenhum lugar do ponto de vista espiritual. Para ser preciso, na verdade vão a "algum lugar", mas, como avançam tão lentamente em direção à Meta Suprema, é como se não estivessem avançando nem um pouco, apesar de estarem avançando. O que quero dizer? Isto: A Sua Graça está presente inclusive no caso das criaturas mais baixas que o Seu Poder inventou. Todas elas avançam em direção à Meta Suprema (Ele Mesmo), mas, em geral, tão lentamente que não é facilmente perceptível. De qualquer forma, sempre há progresso. Muitas pessoas pensam que a Sua Graça só está presente quando um aspirante sincero finalmente encontra o seu genuíno Guru, mas isso não é realmente verdade. No longo caminho denominado "o caminho espiritual", a porção conhecida como "relação Guru/discípulo" é somente a reta final. Sim, pode ser a parte mais interessante do caminho, porque a carreira está a ponto de terminar, mas o caminho ainda é muito grande. Sem a Sua Graça, "ninguém" (e por "ninguém", quero dizer exatamente isso) poderia avançar em direção a Ele. Então, a Sua Compaixão está constantemente com todos os seres, de uma maneira ou de outra.
A principal característica das pessoas comuns é que alegam ter alcançado as "glórias" pertencentes às pessoas libertadas, embora ainda não tenham alcançado esses atributos. Por exemplo: Liberdade, Veracidade, livre Vontade, verdadeiro Conhecimento, poder de Ação e por aí vai. Obviamente, a maioria delas dirá: "Nunca aleguei possuir esses atributos", se isso for perguntado a elas, mas se comportarão como "pessoas livres" cheias de Verdade, livre Vontade, verdadeiro Conhecimento, poder de Ação e glórias similares que são somente possesões das benditas almas elevadas. A triste verdade é que não têm verdadeira Liberdade, Veracidade, livre Vontade, Conhecimento, poder de Ação, etc. Estão vivendo em uma constante mentira, e esse é o motivo da sua também constante agitação e dor. Essas ilusões em que vivem faz com que seja muito difícil se darem conta da verdadeira Meta da sua vida e da necessidade de recorrer a um genuíno Guru para aprender como sair desse pesadelo chamado "vida em escravidão total". Alguém poderia perguntar sobre provas de que todas essas ilusões existem nessas pessoas comuns. As provas surgem na maneira como elas pensam e falam sobre tantas coisas. Todas essas noções são completamente ilusórias, mas elas não percebem isso devido ao Seu poder de tirodhāna ou ocultação da Sua natureza essencial:
- Ilusão de Liberdade: "Não sou afetado por nada/ninguém ao meu redor", "Estou no controle da minha vida", "Sou o arquiteto do meu destino", "Decidi ter a vida que tenho", "Sempre permaneci fiel aos meus princípios", etc.
- Ilusão de Veracidade: "Estou dizendo essas coisas horríveis a essa pessoa, e destruindo-o(a) no processo, porque sou completamente sincero", "Como conheço a verdade, posso julgar outras pessoas corretamente", "Eu sou eu", etc.
- Ilusão de libre Vontade: "Se tenho dinheiro, posso fazer tudo o que quiser", "Sempre consigo tudo do meu jeito", "Tive uma grande ideia e ela pertence apenas a mim", etc.
- Ilusão de verdadeiro Conhecimento: "Como sei perfeitamente o que está acontecendo aqui, posso agir de acordo", "Posso opinar sobre esse tema porque o conheço completamente", "Eu sei o que é melhor para mim", etc.
- Ilusão de poder de Ação: "Tudo acontecerá exatamente como planejei", "Se você tiver tempo para me explicar tudo isso em detalhe, finalmente entenderei esse assunto" (por "isso", quero dizer Deus e também as complexidades do Yoga, Trika, Sânscrito, física nuclear, mecânica quântica, a relatividade de Einstein, e o restante), "Querer é poder", etc.
Se você pensa que exagerei com os exemplos acima, ainda não conhece a sua própria ignorância, isto é, não conhece a mentira em que vive. Se você não tolera ver essas coisas em si mesmo, pode vê-las em outros facilmente para aprender como funcionam as coisas no mundo real: "As pessoas protestam contra governos que elas mesmas elegeram", "As pessoas pensam se, se estivessem na posição de outra pessoa, poderiam fazer melhor", "As pessoas estão sempre defendendo as suas pequenas ideias e opiniões como se toda essa massa de ignorância fosse a Verdade Absoluta", "As pessoas recorrem até ao tribunal quando se sentem que o seu bom nome e honra foram manchados pelas palavras de outra pessoa", "As pessoas não percebem que estão defendendo agora o que outras pessoas atacaram há alguns anos", "As pessoas não percebem que estão atacando agora o que outras pessoas defenderão no futuro", etc. Tal bagunça de mentiras baseadas em ilusões produz constante desequilíbrio e dor em todas as pessoas que pertencem à terceira categoria mencionada por quem levanta a objeção. Essas ilusões são tão fortes que, muito frequentemente, inclusive a presença de verdadeiras catástrofes nas vidas das pessoas comuns não dá conta da tarefa de mostrar que todas essas ideias sobre Liberdade, verdadeiro Conhecimento, etc., são uma ilusão no seu caso até que elas não tenham um ganho real por meio da Sua Graça após superar inúmeros obstáculos por meio de constantes esforços no caminho espiritual.
Nas pessoas comuns, também existe uma pequena quantidade de anugraha ou Graça que geralmente aparece na forma de uma voz interior que diz: "Algo está errado, algo está faltando", etc. Com essas declarações, a voz está dizendo tacitamente: "Você não é realmente Livre, não tem verdadeira Vontade, não tem verdadeiro Conhecimento, etc. Acorde!". Mas o Seu poder de tirodhāna ou ocultação da Sua natureza essencial, por ser predominante nessas pessoas, domina o poder de anugraha ou Graça. De qualquer forma, essa Graça nunca pode ser aniquilada, como é óbvio. Então, como essas pessoas não podem se livrar da voz que diz todas essas coisas a todo momento, precisam sobrepor "ruído" sobre o que ela está afirmando. Esse ruído é tanto externo quanto interno. Por exemplo: Festas, fogos e coisas semelhantes (externo) e uma longa série de pensamentos sobre banalidades (interno). Esse constante ruído também é alimentado pelo consumo de substâncias embriagantes, tais como álcool, drogas, etc., assim como pela constante busca por gratificação sexual. Dessa forma, através de todo esse ruído, as pessoas comuns tentam calar a voz interna que lhes diz: "Acorde!". Essa é uma das razões pelas quais a ignorância geralmente é "ruidosa". Por exemplo, guerras, a mais extrema manifestação da ignorância humana, também são extremamente ruidosas. Quando todo o ruído some, as pessoas podem ouvir claramente a voz interna e, na sua maior parte, isso costuma ser uma experiência muito desagradável para elas. Esse é o núcleo da sua escravidão.
Então, do ponto de visa dessas pessoas, a sua escravidão é uma tragédia, mas, de qualquer forma, do ponto de vista do Bem-aventurado Senhor, é um Jogo. Sim, o Senhor está sempre o Seu Estado, inclusive em meio a sofrimento e assustadora ignorância. Isso é assim porque Ele é realmente Livre. E, felizmente, inclusive no caso dessas pessoas comuns, o Seu poder de anugraha ou Graça finalmente dominará o poder de tirodhāna mesmo que o processo leve mil nascimentos, e terão uma oportunidade de transformar-se em aspirantes espirituais, ou seja, pessoas em busca da verdadeira Liberdade, verdadeira Vontade, verdadeiro Conhecimento, e assim sucessivamente.
Da mesma forma, como acabei de te ensinar, os da segunda categoria (os aspirantes que buscam avançar em espiritualidade) também são pessoas comuns, mas a diferença é que eles finalmente se dão conta de que estavam vivendo uma "grande mentira" e agora estão buscando uma saída à sua escravidão. Isso mostra uma forte presença da Sua Graça nelas.
A primeira categoria (as pessoas libertadas, os santos e os grandes sábios) estão repletos do Seu anugraha ou Graça. A segunda categoria (os aspirantes espirituais) contém uma mistura do Seu anugraha e tirodhāna (ocultação da Sua natureza essencial) em proporções mais ou menos similares. A terceira categoria tem muito mais tirodhāna do que anugraha, o que explica o constante sofrimento ao qual estão sujeitas as pessoas comuns.
Resumindo tudo, a resposta dada por Abhinavagupta à objeção sobre "se o Ser e o intelecto estão presentes em todos, então por que não são todos libertados ou todos escravizados?" foi esta 9a estrofe. Segundo Yogarāja, essa resposta poderia ser resumida simplesmente dizendo que a "descida de Poder" (Śaktipāta) que provém do Senhor é sempre "irrestrita", isto é, é livre de todas as restrições e é dada a todos igualmente. Mas, embora Śaktipāta seja assim, a Sua Luz não é sempre refletida de maneira perfeita em todos os intelectos devido à presença de impurezas ali. Tudo isso produz as diferentes categorias de "libertado", "aspirante à libertação final" e "atado". O termo "descida de Poder" equivale a "outorgamento de Graça". Muito bem, isso é suficiente.
2 Com impurezas no espelho do intelecto, não quis dizer, na primeira nota explicativa, "algo moralmente impuro", mas sim "algo que produz limitação e contração". Em Trika, impurezas nunca estão relacionadas a ações boas e ruins e toda essa coisa de mérito e demérito, mas sim à Vontade do Ser Supremo que finge ser um indivíduo limitado. É por isso que Abhinavagupta está usando um espelho completamente limpo para descrever as coisas que acontecem no intelecto de uma pessoa iluminada. De qualquer forma, a presença de impurezas nos espelhos (os intelectos) de pessoas que não obtiveram iluminação espiritual provoca distorções, e o mesmo luminoso Senhor não é refletido adequadamente. Essa distorção produz todas as categorias que foram extensamente explicadas na nota anterior.
Śaktipāta ou descida de Poder é a mesma coisa que "outorgamento de Graça". É uma descarga dos raios do Seu Poder Supremo, como o sol brilhando sobre todos ainda que sejam bons, ruins, inteligentes, tolos, etc. Assim como o sol não faz nenhuma distinção, o Ser Supremo mostra a sua Luz a todos. No entanto, essa Luz é refletida perfeitamente apenas nos intelectos das almas santas que estão atravessando o seu último nascimento, isto é, dos que chegaram ao final do Saṁsāra ou Transmigração de um corpo a outro desde tempos imemoriais. Uma vez que o Ser se revele a alguém no espelho do seu extremamente puro intelecto, esse é o fim do Jogo conhecido como Transmigração repleta de escravidão.
Aqui, Yogarāja, o comentador, está explicando claramente que todas as impurezas presentes nos intelectos de pessoas que ainda não tenham alcançado o estado de libertação final do Saṁsāra ou Transmigração se devem a impressões residuais das impurezas (mala-s) chamadas Āṇava, Māyīya e Kārma (ou seja, Āṇavamala, Māyīyamala e Kārmamala). A primeira impureza não pode ser superada por meio de absolutamente nenhum esforço que um indivíduo limitado possa fazer. Então, só pode ser superada por meio da Sua Graça. As duas impurezas restantes também são superadas apenas através da Sua Graça, mas, como essa Graça geralmente aparece como esforços que um indivíduo limitado faz para superá-las, existe a sensação de que o indivíduo limitado teve sucesso apenas por meio dos seus esforços. É por isso que normalmente se ensina em Trika que as últimas duas impurezas podem ser superadas por meio de esforço. Sim, esse esforço também surgiu por causa da Sua Graça, mas, como esse fato é indireto, os indivíduos limitados raramente o percebem e pensam que foram os verdadeiros autores.
O Āṇavamala tem a ver com "falta de Plenitude". Não pode ser superado por meio de nenhum esforço (por exemplo, ficar dizendo toda hora "Sou Pleno", "Sou Pleno" para atacar a impureza). Não, não, não, isso nunca vai funcionar. Aquele que assumiu limitação e contração reduzindo a Sua Plenitude é o Único que pode remover essa limitação e contração. O Māyīyamala é a impureza que produz diferenças (dualidade). Essa impureza pode ser removida por meio de esforços baseados na remoção de todas as diferenças (ex.: considerando todos os pensamentos como os raios que emanam a partir do próprio Ser, não importa o quão bons ou ruins esses pensamentos possam ser). Sim, esses esforços também provêm da Graça, mas, como isso é indireto, parece como se o indivíduo limitado estivesse "fazendo algo" por conta própria. A última impureza, Kārmamala, é baseada na noção de que o próprio indivíduo é o fazedor de todas as ações. Essa impureza pode ser superada por meio de esforço também, mas o método varia segundo os sistemas filosóficos: Por exemplo, em Vedānta, o método se baseia em renunciar aos frutos das ações. De qualquer forma, em Trika, o método não é esse, mas sim "a constante lembrança do Ser enquanto se está fazendo ações".
Os seres que estão no seu último nascimento e que superaram as três impurezas por meio de Graça e esforço vivem como seres libertados inclusive em meio a essa Transmigração cheia de miséria. Estão dotados de superioridade em todos os aspectos porque o Poder Supremo está sobre eles. Pode chamá-los como preferir: libertados, santos, sábios, grandes seres, almas elevadas, etc., mas a sua principal característica é sempre a presença da Sua Liberdade Absoluta repleta do Deleite da Mais Alta consciência do Eu. Quando os seus corpos finalmente caem no momento da morte, tornam-se completamente identificados com o Senhor Supremo para sempre. Oh, esse tema é muito complicado e requereria um volume inteiro para explicá-lo em detalhe.
3 No caso de outra pessoa que ainda não esteja libertada, a Sua Refulgência não se revela plenamente devido ao Seu poder de ocultação (tirodhāna) que aparece como múltiplas impurezas sobre os espelhos dos intelectos. Deve-se notar que Yogarāja está chamando as pessoas comuns (a tereceira categoria explicada na primeira nota) de "animais" (paśu-s) aqui. São chamadas assim porque a sua inteligência está no nível de um animal em comparação a uma pessoa plenamente iluminada. Neles, existe a predominância de tirodhāna ou ocultação, que as ata à miséria e limitação constantes. Por outro lado, Yogarāja está mencionando que os aspirantes espirituais, cheios de intenso desejo de avançar em espiritualidade, são o resultado de uma mistura dos Seus poderes de tirodhāna (ocultação) e anugraha (Graça). Esses aspirantes também são animais, mas de uma raça diferente, hahaha. Não, ele não está dizendo isso da maneira como eu disse, hehe. É suficiente!
4 Aqui, Yogarāja está especificando uma verdade que declarei em uma nota anterior, de que Śaktipāta está em todo lugar, isto é, no caso de todos os seres, e não somente no caso de Guru e discípulo. Também mencionei que a relação Guru/discípulo era como a reta final no longo caminho de muitos nascimentos nessa roda conhecida como Saṁsāra ou Trasmigração.
Depois, ele põe em palavras uma verdade que sempre ensino aos meus discípulos: que o dar-se conta do ser, também denominado libertação final ou espiritual, não pode ser obtido por meio de práticas, que são ações, sejam elas tão pomposas quanto o sacrifício de cavalo (um antigo sacrifício védico onde um cavalo era morto para que chegasse a um melhor nível de existência, se a minha memória não falha) ou tão silenciosas quanto o murmúrio de um mantra, a meditação, etc. Todas as ações, por estarem na esfera de Māyā —o poder "limitador"—, estão sempre sob o domínio da niyatiśakti, o poder que gera restrição. Como o Ser Supremo, por estar além de Māyā, não tem nenhuma restrição, não pode ser alcançado por meio de nenhuma ação. Então, é apenas a Sua Graça que é efetiva em produzir a Sua revelação a um aspirante. Esse tópico sobre a Graça ser o Núcleo do ato de dar-se conta do Ser foi explicado extensamente por mim em notas anteriores, bem como no Blog, na parte sobre "ignorância espiritual".
Então, qual é o propósito de realizar práticas espirituais? A resposta é muito simples mas chocante, especialmente para as pessoas que estão convencidas de que alcançarão o majestoso Senhor através de esforços ou que investiram muitos anos das suas vidas meditando, etc.: São um mero passa-tempo, entretenimento, enquanto Ele decide o que fará com você no próximo momento. Sim, esse é um bom jeito de explicar as coisas para que os aspirantes entendam. No fim, não importa o quão alto seja o estado que você possa ter alcançado por meio dessas práticas, sempre estarão aquém no que diz respeito a revelar o Grande Senhor. Isso não é possível por meio de esforços de nenhum tipo, e sim é algo que vem da Sua própria Liberdade Absoluta, como um presente para o grande aspirante que conseguiu chegar à Porta da Sua Casa, paradoxalmente, da Sua Graça também. Esse ensinamento é muito importante em Trika. Sem entendê-lo, não é possível entender como funcionam as coisas nesse sistema filosófico.
5 Com essa estrofe, o comentarista mostra o papel exercido pelo intelecto no processo de Śaktipāta ou descida de Poder (outorgamento de Graça). O Mestre mencionado é, obviamente, Śiva. Esse Mestre não "desce" porque ele é Sahajonnata ou Naturalmente Elevado (Ele não sobe para ficar assim, como um indivíduo limitado que faz esforços para ser uma grande personalidade em um certo campo -e.g. esportes, ciência, política, etc.-, mas Ele já é assim, ou seja, Elevado, sempre naturalmente). É apenas o Seu Poder ou Śakti que, embora constantemente em unidade com Ele, é capaz de descer sobre um indivíduo limitado e pô-lo em Liberdade. Como isso é sobre-humano em todos os aspectos, nenhum poder além da Sua Śakti pode realizar essa tarefa (nenhum deus, nenhuma deidade, nenhum mantra, nenhuma ação, etc.).
Depois disso, Yogarāja explica que as pessoas comuns, que estão abaixo das categorias de aspirantes e seres iluminados, estão constantemente ocupadas com boas e más ações e participando das experiências de prazer, dor, etc., porque existe ausência de uma percepção da sua natureza essencial, isto é, não se dão conta do seu divino Ser. Como resultado, transmigram e transmigram, de um pensamento a outro, de jovem a velho, de um corpo a outro e por aí vai. Essa Transmigração é chamada Saṁsāra em sânscrito e, enquanto é um Jogo no caso do Grande Senhor, equivale a miséria extrema no caso desses indivíduos limitados que ainda não se deram conta do Grande Senhor.
Em suma, são esses dois poderes (tirodhāna e anugraha, ocultação e Graça) que são realmente responsáveis pelas divisões conhecidas como "Libertação e escravidão". A Graça não é nada mais que a revelação da própria natureza essencial, o próprio Ser, e ocultação significa a ocultação dessa mesma natureza essencial, desse Ser. Quando tirodhāna predomina, o indivíduo se chama "uma pessoa comum"; quando tirodhāna e anugraha estão em um certo grau de equilíbrio, chama-se "um aspirante espiritual"; e quando anugraha predomina, chama-se "uma pessoa libertada". Isso é um Jogo cheio do Seu Rasa ou Seiva ao longo das três categorias que acabei de mencionar. OK, terminou!
Estrofes 10-11
Dessa forma, tendo explicado tudo isso acompanhado de raciocínio lógico, experiência (direta e) escrituras reveladas, (Abhinavagupta) declara, em primeiro lugar, por meio de dois aforismos, que o mundo, que brilha em estreita conexão com Isso --com a Mais Alta Realidade--, (o qual) é composto por trinta e seis tattva-s ou categorias que surgem gradualmente (a partir dessa mesma Mais Alta Realidade e que) reside dentro do previamente explicado grupo de quatro ovos (chamados) Śakti, etc., tem Paramaśiva --o Supremo Śiva-- —a Causa de (todas) as causas— como natureza essencial1 :
O universo, cuja natureza é trinta e seis --consiste de 36 tattva-s ou categorias-- brilha nesse Mais Alto Princípio, que é (um princípio) cuja natureza é Refulgência, que é totalmente Pleno, (cuja) Grande Bem-aventurança (provém) de um descanso no Seu próprio Ser, que é repleto dos instrumentos da Consciência volitiva, completamente cheia de infinitos poderes, que é livre de todos os pensamentos, Puro, Pacífico (e) desprovido de todo surgimento (e) dissolução||10-11||
(A expressão "yat paratattvam" significa:) O princípio (denominado) Śiva, que é de tal tipo, (isto é, como foi descrito na estrofe 10 e na primeira metade da estrofe 11, tudo o qual pode ser resumido por esta palavra:) "Para" (ou) Pleno. O universo, que será discutido mais tarde, que começa com Śiva --o primeiro tattva ou categoria-- (e) termina na terra --tattva ou categoria 36--, (e) que está descansando (nesse mesmo Śiva), manifesta-se Nele --em Śiva--. (Em outras palavras,) o brilhante (universo), por ser certamente "tadabhinna" --não distinto Dele--, aparece em unidade --com Ele Mesmo--. Esse é o sentido2 .
Uma objeção: Um tattva é aquilo no qual tudo —o corpo, etc.— se estende ou desdobra, ou (tattva é) aquilo que se estende --que dura-- até a dissolução. Esse é o significado opcional de tattva. Dessa forma, diz-se (o seguinte:): "Como (poderia) esse nome ou título 'tattva', que implica o estado de algo inerte ou inconsciente, ser (usado) em relação ao Senhor Paramaśiva, cuja natureza é Consciência?"3 .
(A resposta é esta:) Nesse contexto, enquanto (o tópico sobre o Senhor Supremo) for explicado (por Abhinavagupta) por meio de palavra(s) com referência a pessoas (às quais ainda) se tem que ensinar --iniciantes em sânscrito e filosofias indianas--, durante todo esse tempo, então, o nome ou título "tattva" (será usado por ele, ainda que as coisas) não sejam realmente (assim) --Em suma, por ser compassivo com principiantes em sânscrito e filosofias indianas, Abhinavagupta está usando o termo "tattva" para designar o Senhor Supremo, embora Ele não seja de forma alguma um tattva segundo o Trika--4 .
De que tipo é esse Mais Alto Princípio? (É um Princípio) cuja essência é uma Grande Luz, (ou seja, é Bhārūpa ou) Alguém cujo rūpa (ou) natureza essencial (é) Bhās (ou) Refulgência. Esse é o significado5 .
De forma similar, (o termo) "paripūrṇa" (indica que Ele) é Completo e Carente de Desejos --isto é, totalmente Pleno--. (Uma pequena objeção poderia ser levantada aqui:) "Um objeto inerte (tal como) um cristal, um espelho, etc., é também completo e carante de desejos". (Abhinavagupta) disse assim (então:) "(Svātmani viśrāntito mahānandam), (ou seja, Ele é Alguém cuja) Grande Bem-aventurança (provém) de um descanso no Seu próprio Ser". (Para expressar isso em termos simples:) "(Ele é Alguém) cuja Grande Bem-aventurança (ou) Suprema Satisfação (provém) de um repouso na Sua natureza essencial, que é o Rasa ou Seiva (cheio do) Incrível Deleite da Plena --não fragmentada-- consciência do Eu "6 .
Dessa forma, visto que (a Sua) Essência (é) Sphurattā ou Reluzente Consciência que provoca Supremo Deleite, diz-se que ela é a diferença (entre Ele e) um objeto inerte tal como um cristal e coisas similares, todas as quais são manifestadas (pela Sua Luz). Por essa mesma razão, (Abhinavagupta também disse:) "(Icchāsaṁvitkaraṇairnirbharitam), isto é, (Ele está) repleto dos instrumentos da Consciência volitiva", ou seja, (Ele é) verdadeiramente a natureza essencial dos (Poderes de) Vontade, Conhecimento (e) Ação. No entanto, (Ele, o Mais Alto Princípio,) não é como (o Brahma) dos śāntabrahmavādī-s, que é desprovido de Poder (e) é como uma coisa inerte7 .
Além disso, (Abhinavagupta, imediatamente depois desse "Icchāsaṁvitkaraṇairnirbharitam", expressou o seguinte para ratificar as suas palavras anteriores:) "(Anantaśaktiparipūrṇam), (isto é, Ele está) completamente cheio de infinitos poderes". (O termo Anantaśakti significa) infinitos (ou) inúmeros poderes que consistem em nome (e) forma, (tais como) "uma vasilha", "um tecido", etc. --em outras palavras, tais poderes se tornam os intermináveis objetos desse universo--. (Esses) poderes, (p. ex.) Brāhmī e o restante, que são brotos dos Poderes de Vontade, Conhecimento (e) Ação, derivam da multidão de palavras. (Ele é "Anantaśaktiparipūrṇam" porque é) "paritaḥ pūrṇam" (ou) totalmente penetrado por esses (poderes infinitos). (Então), "(todos esses inúmeros poderes) que surgem unicamente Dele (também) descansam somente Nele "8 .
Dessa forma, diz-se que existe a Liberdade Absoluta, cuja natureza (é) Parāvāk --a Fala ou Palavra Suprema--, no Bhagavān ou Afortunado Senhor. Uma objeção: Se o Mais Alto Princípio tem por natureza Vāk --Fala ou Palavra--, então (esse Mais Alto Princípio) é fictício ou inventado na própria mente, já que (Vāk) está completamente dividido em (inúmeras) palavras. (Se esse for o caso,) "como (poderia haver) yoga ou utilização de kalpanā --criação mental-- Nisso cuja essência é Pura Luz?". Tendo isso em mente, (Abhinavagupta) disse: "(Sarvavikalpavihīnam, isto é, Ele é) livre de todos os pensamentos". (Como resultado,) esse Deleite da Mais Alta consciência do Eu, o qual (reside) no Supremo Experimentador ou Conhecedor --em Paramaśiva--, mesmo tendo Vāk --Fala ou Palavra-- como natureza, carece de vikalpa-s ou pensamentos.
Como vikalpa ou pensamento, que se caracteriza pela negação de outra coisa, insinuando duas realidades que aparecem na forma de, (por exemplo,) uma vasilha (e) o que não é uma vasilha, determina que uma vasilha é diferente do que não é uma vasilha. No entanto, no caso de Prakāśa --a Luz do Senhor Supremo--, cuja essência é certamente o Deleite da Mais Alta consciência do Eu, não há, em oposição, algo que seja "aprakāśa" --algo que não seja Luz-- além de Prakāśa ou Luz, (e, como consequência,) como existe exclusão disso --da existência de que algo é oposto a Prakāśa em Prakāśa--, a condição (conhecida como) vikalpa ou pensamento não existe no Seu caso --no caso de Prakāśa ou Luz--9 .
(De qualquer forma, poderia ser levantada a seguinte objeção:) Se, sem dúvidas, a coisa que é diferenciada ou excluída como não sendo Prakāśa ou Luz manifestar-se Nisto cuja natureza é Prakāśa, então, segundo o axioma (expresso na segunda metade de Spandakārikā-s II.3):
"... como (a alma individual) tem o sentimento ou percepção de identidade (com essas entidades) devido ao conhecimento de todas elas..."
etc., inclusive essa coisa adquire a natureza de Prakāśa --isto é, torna-se Prakāśa também--. (Se isso for verdade, ou seja, se essa coisa que foi diferenciada ou excluída como não sendo Prakāśa ou Luz também for idêntica com Prakāśa ou Luz em última análise, então) como ela --a coisa que foi diferenciada ou excluída como não sendo Prakāśa or Light-- poderia ser, (ao mesmo tempo,) algo que produz diferenças ou exclusão no caso Dele --Prakāśa ou Luz-- que é o próprio Ser, como consequência do qual (tal coisa) entraria na categoria de vikalpa ou pensamento sob essas circunstâncias?
(A resposta a essa objeção é esta:) Então, qualquer coisa (que) essa (coisa que menciona o contestador) poderia ser "não se manifesta em oposição", (porque) "como (poderia) uma coisa que não está sendo revelada por Prakāśa ou Luz existir aqui --em Prakāśa, na Luz, em Śiva-- dotada de uma natureza oposta (à própria Luz)?", (e) "(como) poderia (tal coisa) inclusive produzir diferença ou divisão (nessa mesma Luz)?". (Nada disso é possível no Ser Supremo,) visto que o Mais Alto Princípio, (por ser "sarvavikalpavihīnam" como estabelece Abhinavagupta,) é livre de todos os vikalpa-s ou pensamentos, que se baseiam em nas exclusões ou distinções. (Em suma, esse Mais Alto Princípio) tem uma natureza essencial que é livre de exclusões ou distinções --não contém opostos--10 .
Por essa mesma razão, (Abhinavagupta) disse (que o Mais Alto Princípio é) "Puro", (ou seja,) Imaculado, devido à ausência (Nele) da fuligem da impureza, a qual --a fuligem-- consiste de vikalpa-s ou pensamentos. De maneira similar, (Abhinavagupta disse que esse Mais Alto Princípio é) "Pacífico", (porque,) devido à ausência de agitação ocasionada por conhecedor (e) objeto cognoscível, (esse Mais Alto Princípio) permanece em Sua própria natureza essencial por meio de um sāmarasya --lit. o estado de ter o mesmo sabor que-- de Śakti --o Poder do Ser Supremo, que se caracteriza pelo Deleite da consciência do Eu-- --em suma, "por meio do Estado onde Śakti, o Deleite da consciência do Eu, tem o mesmo sabor", isto é, existe equilíbrio total em Śakti -o Poder Supremo- aqui, no mais Alto Princípio--. No entanto, (esse Mais Alto Princípio) não é como um pedaço de pedra11 .
Além disso, (o Mais Alto Princípio é) "(layodayavihīnam), (isto é,) desprovido de todo surgimento (e) dissolução". Tendo (os Veda-s) considerado (o Ser) assim:
"Este Ser aparece para sempre."
(a conclusão à qual se chega é que Ele é) eterno, certamente. Devido a isso, o tempo, que aparece como passado, presente (e) futuro, não tem efeito Nele, porque "o surgimento do tempo (tem lugar) a partir Dele próprio", (e, de fato,) no caso do universo, ele --o universo-- se tornou o universo, já que se admite que o Mais Alto Princípio é livre de criação (e) destruição. (Esse assunto) é explicado dessa maneira12 ||11||
1 Abhinavagupta é um Mestre plenamente realizado que tem tanto Bauddhajñāna (conhecimento intelectual) quanto Pauruṣajñāna (conhecimento sobre o Ser), isto é, está dotado tanto de conhecimento das escrituras quanto de uma experiência direta com o Ser Supremo. Por essa razão, o grande sábio foi capaz de explicar tudo isso acompanhado de raciocínio lógico, experiência direta e escrituras reveladas (os 64 Bhairavāgama-s, p. ex.: Mālinīvijayatantra, Svacchandatantra, Rudrayāmalatantra, Netratantra, etc.). Agora, por meio dos aforismos 10 e 11, ele declarará que o mundo, que brilha estreitamente conectado com Isso --com a Mais Alta Realidade, que é o próprio Ser--, que é composto de 36 tattva-s ou categorias (Ver Tabela de Tattva-s) que surgem gradualmente desse mesmo Ser, e que reside dentro do previamente explicado grupo de quatro ovos chamados Śakti, etc. (Ver estrofe 4), tem Paramaśiva (o Supremo Śiva, que é a Mais Elevada Realidade), a Causa de todas as causas (porque Ele é sempre a origem de todas as causas), como sua natureza essencial. Em suma, a natureza essencial ou essência do universo não é nada mais que Paramaśiva, sempre. Então, não existe nenhum outro Poder que possa ser a sua essência, e, como o próprio Abhinavagupta dirá, esse Paramaśiva é um Princípio cuja natureza é Refulgência, que é totalmente Pleno, cuja grande Bem-aventurança provém de um descanso no Seu próprio Ser, que é livre de todos os pensamentos, completamente cheio de infinitos poderes, que é livre de todos os pensamentos, Puro, Pacífico e desprovido de todo surgimento e dissolução. O significado por trás dessa rica descrição do Grande Senhor será revelado pelo venerável Yogarāja por meio do seu comentário sobre esse par de estrofes.
2 A expressão "yat paratattvam" significa literalmente "o Mais Alto Princípio que", ou seja, "o Mais Alto Princípio cuja natureza é Refulgência, etc.", como se pode ler nas duas estrofes. Aqui, o comentarista (Yogarāja) está especificando que esse Mais Alto Princípio é Śiva (o Grande Senhor). E esse Śiva é Para ou Pleno (Completo). Em suma, Ele não depende de nada mais para existir e para estar completamente satisfeito em Si Mesmo. Então, esse é o significado de "Mais Alto" na expressão "Mais Alto Princípio" (paratattvam). O "m" final é adicionado a "tattva" porque esse é um substantivo neutro.
Em sânscrito, existe o prātipadika ou forma bruta de um substantivo. O que isso significa? Significa a forma não declinada de um substantivo, ou seja, o substantivo sem nenhum gênero e número aplicado a ele. Por exemplo, "tattva" é o prātipadika ou forma bruta do substantivo "tattvam", porque "tattva" ainda não tem nenhum gênero e número visíveis ainda. O Prātipadika é, portanto, a forma na qual os substantivos aparecem no dicionário. Depois, antes de inserir tal substantivo em uma oração, deve-se decliná-lo, isto é, deve-se atribuir-lhe um gênero (masculino, feminino ou neutro) e um número (singular, dual ou plural). No caso de "tattvam", a presença desse "m" final indica que o substantivo está no caso Nominativo ou Acusativo (neutro - singular) ... embora pudesse ser um substantivo declinado no caso Acusativo (singular), mas isso não é verdade nesse caso, porque "já sei que tattva é um substantivo neutro". Então, o único problema com "tattvam" é averiguar se está no caso Nominativo ou Acusativo... mas resolvo rapidamente esse problema para você, pois posso assegurar-lhe que, no contexto das estrofes, "tattvam" está no caso Nominativo. Em suma, nesse caso, "tattvam" significa "o Princípio" (Nominativo --é nomeado--, neutro, singular). Muito bem, chega dessas sutilezas gramaticais!
O universo, que começa com Śiva (o primeiro tattva) e termina com o tattva terra (a 36a categoria), descansa unicamente em Śiva. Por Śiva, o comentarista quis dizer "Paramaśiva" na verdade. E esse universo se manifesta apenas em Paramaśiva. Em outras palavras, o universo está em completa unidade com o seu Senhor (com Paramaśiva), visto que é "tadabhinna" ou "não diferente (abhinna) Dele (tad)". O sentido dessa porção do comentário é, então, muito simples de entender, certo?
3 Agora, levanta-se uma objeção: Quando a palavra "tattva" deve ser usada com referência a "algo no qual tudo se estende ou desdobra" (da raiz "tan" - desdobrar, estender) ou a "algo que se estende até a dissolução do universo" (da mesma raiz "tan"), como poderia esse termo (isto é, tattva), que implica o estado de algo inerte ou inconsciente, ser utilizado em relação ao Grande Senhor, cuja natureza é Consciência, ou seja, Vida?
Por exemplo: Corpo físico, mente e coisas assim se estendem em uma série de tattva-s ou categorias. O corpo físico se estende nos últimos cinco tattva-s (32o a 36o) e a mente como mero "manas" ou aquilo que "pensa a todo momento" se estende através do tattva 16. Então, como poderia a palavra "tattva", que implica meras realidades manifestadas pelo Seu Poder, ser usada com relação a Paramaśiva, que é a Origem de tudo e que é totalmente Auto-existente (Ele não é uma realidade manifestada como esses tattva-s)? Esse é o significado dessa objeção.
4 A resposta dada pelo comentarista (Yogarāja) é que Abhinavagupta está falando com pessoas às quais ainda se deve ensinar, ou seja, aspirantes que são principiantes em sânscrito e filosofias indianas. Então, Abhinavagupta está usando esse termo "tattva" para simplificar as coisas para esses principiantes. Quando se conhece sânscrito em profundidade, por exemplo, aprende-se que o termo tattva também significa "princípio". Dessa forma, o termo tattva não significa somente "categoria" como as 36 categorias desde o primeiro tattva (Śivatattva) até o trigésimo sexto tattva (Pṛthivītattva), mas também "princípio". Em suma, quando alguém está falando sobre um tattva, pode estar referindo-se a essas categorias da manifestação universal ou ao Princípio que é a origem de todas elas. Nesse sentido, a palavra tattva é, às vezes, escrita como Tattva para mostrar, dessa forma, que está sendo usada no sentido de "Princípio" (o Mais Alto Princípio), e não de "categoria". Como todas essas sutilezas sânscritas/filosóficas estão fora do alcance de todos os principiantes em espiritualidade, o Grande Mestre decidiu simplificar as coisas para eles utilizando o termo "tattva" para designar o Grande Senhor, sem explicar em profundidade todas essas coisas que acabei de explicar. Em suma, Abhinavagupta está usando o termo "tattva" aqui como "Princípio", e não como "categoria". O Grande Senhor nunca é uma categoria que foi manifestada pelo Poder Supremo, e sim é a própria Essência desse Poder. Portanto, Ele é o Mais Alto Princípio, o "Paratattva", como Abhinavagupta escreveu na estrofe, e de forma alguma a "mais alta categoria".
5 E qual é a essência desse Mais Alto Princípio (Paratattva)? É Bhās ou Prakāśa, ou seja, uma Grande Luz; o Senhor Paramaśiva é Prakāśavimarśamaya, isto é, consiste de Prakāśa e Vimarśa (Refulgência e Consciência da sua própria Refulgência). Dessa forma, a Sua Refulgência ou Grande Luz não é de forma alguma algo inerte (desprovido de atividade) como no caso do Brahma adorado pelos seguidores da doutrina do Brahma Pacífico (explicarei isso a você mais adiante por meio de outra nota explicativa). A Sua Refulgência é plenamente consciente de Si mesma por meio do seu Vimarśa (Śakti, o Poder do Grande Senhor). Tudo o que você pode ver agora mesmo é a Sua Refulgência. Por Refulgência, não quero dizer simplesmente luz física, mas sim a substância que sustenta todas as realidades ao seu redor agora mesmo. Ao mesmo tempo, você é plenamente consciente dessas realidades que estão compostas pela Sua Luz. Essa Sua consciência, que lhe permite ser plenamente consciente da Sua Luz, é conhecida como Śakti ou Vimarśa. E esse Vimarśa é outro nome para Ānandaśakti ou o Poder de Bem-aventurança. E essa Bem-aventurança Suprema não é nada mais que o Seu Svātantrya ou Svācchandya (Sua Liberdade Absoluta). Mas o que realmente significa tudo isso na prática? Isto:
As pessoas que ainda não estão completamente instruídas pensam que uma pessoa libertada é alguém que está em êxtase durante a sua sessão de meditação na posição de lótus ou algo parecido. Então, verão o meditador e dirão: "Oh, ele é realmente bem-aventurado". De qualquer forma, quando esse meditador sair da posição formal com as pernas cruzadas, vira presa de todas as coisas estúpidas que lhe acontecem. Em outras palavras, perde a sua Bem-aventurança completamente. Nesse momento, essas pessoas dirão: "Oh, ele não é bem-aventurado agora, porque caiu daquele estado elevado". Isso pode ser aparência ou um fato real. Se esse meditador sente que a sua Bem-aventurança emerge somente quando está meditando formalmente, então, certamente, ele cai toda vez que abandona a sua posição com as pernas cruzadas e se ocupa de atividades mundanas, que são cheias de banalidades. De onde ele cai? Do seu suposto estado elevado. No entanto, se essa pessoa é verdadeiramente libertada em vida, um jīvanmukta, a sua queda é mera aparência. Por quê? Porque ela experimenta Bem-aventurança quando está de pernas cruzadas (durante as meditações formais) e também quando está ocupado com atividades mundanas. A sua Bem-aventurança não está ocorrendo apenas no momento da meditação formal, mas sim é perpétua. Como é possível atingir isso? Unicamente através da Sua Graça. Essa pessoa não sente: "Essa Bem-aventurança que experimento em meditação é a verdadeira... mas toda essa dor e falta de verdadeira Bem-aventurança que experimento durante o resto do meu dia é só... oh, essa horrível ignorância!". NÃO, ela experimenta assim:
"Essa Bem-aventurança que sinto durante a minha meditação é a verdadeira... e toda essa dor e falta de verdadeira Bem-aventurança durante o resto do meu dia também é verdadeira Bem-aventurança... minha depressão é Bem-aventurança, minha raiva é Bem-aventurança, minha felicidade é Bem-aventurança, a vida é Bem-aventurança, a morte é Bem-aventurança, a maldade é Bem-aventurança, a bondade é Bem-aventurança, pessoas feias são Bem-aventurança, pessoas belas são Bem-aventurança, paz é Bem-aventurança, guerra é Bem-aventurança... tudo é Bem-aventurança, porque tudo isso é tadabhinna, ou seja, não é diferente (abhinna) Dele (tad), de Paramaśiva, que é a minha verdadeira Essência!".
Esse é o Estado do Grande Jīvanmukta ou Libertado em vida. Em outras palavras, ele experimenta tudo como Bem-aventurança e nada mais. Dessa forma, vive em perpétua Bem-aventurança, sem nenhuma interrupção, não importa se o corpo está em postura de lótus, etc. Ele tem o ponto de vista do Grande Senhor porque percebe a Bem-aventurança inclusive no que se parece ser a total ausência dela. Essa é a sua grande Realização!
6 E esse Grande Senhor é Paripūrṇa ou "Totallmente (pari) Pleno (pūrṇa)". O prefixo "pari" indica "totalmente, completamente" nesse caso. Obviamente, como Ele é asim, carece de qualquer desejo (nirākāṅkṣa) como afirma o comentarista. De qualquer forma, uma pequena objação poderia ser levantada aqui: "Um objeto inerte também parece completo e sem desejos. Então, qual a diferença entre um objeto inerte e o Senhor?". É por isso que Abhinavagupta adicionou que o Senhor é Alguém cuja Grande Bem-aventurança provém de um descanso no Seu Ser. O comentarista explica essa definição de Abhinavagupta como: "Ele é Alguém cuja Grande Bem-aventurança ou Suprema Satisfação provém de um repouso na Sua natureza essencial, que é o Rasa ou Seiva cheio do Incrível Deleite da Plena --não fragmentada-- consciência do Eu". Mas o que isso realmente significa? Significa isto:
O Senhor não é ninguém mais que "você mesmo" (isso está claro, certo?). Se o leitor pensar que o Senhor é alguém mais, não está compreendendo Trika adequadamente. Então, o que o Senhor (Você!) está fazendo agora mesmo? Ele está a todo momento ocupado em descansar na Sua consciência do Eu. Ainda que o leitor pareça estar ocupado em tantas atividades (pensar sobre objetos, fazer essas ações, preocupar-se com isso ou aquilo, etc.), a sua principal atividade é sempre experimentar um descanso na sua consciência do Eu, em "Eu sou". Nenhuma outra coisa é mais importante que isso no seu caso. Por exemplo, agora, ele está lendo isto e a sua consciência do Eu parece estar perdida enquanto a sua mente reflete sobre o significado das minhas palavras. Mas ele não pode evitar ter que recorrer à própria consciência do Eu para experimentar um descanso ali, e algo distrairá a sua atenção por um momento. Nesse lapso, a sua atenção se moverá das minhas palavras até algo/alguém mais. No intervalo entre as duas percepções (a percepção destas palavras que escrevi e a percepção de algo/alguém mais que toma a sua atenção posteriormente), o leitor experimentará um descanso no seu próprio Ser, em "Eu sou". Por quê? Porque não há nenhum universo onde não existe nenhuma percepção de algo/alguém mais. Existe somente "Eu sou" aqui, no intervalo entre percepções. Esse "Eu sou" também é conhecido como "Śiva-Śakti", pois o luminoso Senhor permanece consciente apenas do Seu divino "Eu". Como esses intervalos surgem a todo momento em vigília, o leitor está mais ocupado em descansar no seu Ser do que em qualquer outra atividade enquanto está no estado de vigília.
E, quando dorme, no momento em que se move de uma percepção a outra durante os sonhos, surgem mais intervalos, porque o leitor é Alguém cuja Grande Bem-aventurança provém de um descanso no próprio Ser. E, em sono profundo, onde aparentemente não há nenhum intervalo entre percepções, também está ocupado em descansar na sua suprema consciência do Eu. A prova disso está no fato óbvio de que, quando acorda, ele sente "Tive um sonho agradável" ou "Não tenho ideia de sobre o que sonhei". A constante fala de "eu isso, eu aquilo" mostra que estava constantemente ocupado com o seu "Eu" novamente. Se não houvesse nenhum "Eu" em sono profundo, como poderia o leitor saber tudo isso? Porque, na ausência de um conhecedor, haveria também ausência de conhecimento na forma de "Tive um sonho agradável" ou "Não tenho ideia de sobre o que sonhei".
Essa continuidade da consciência do Eu, esse Supremo Estado de Eu, é conhecida como Turya ou o Quarto Estado, pois penetra todos os outros três estados comuns de consciência (vigília, sono e sono profundo). É, portanto, Cidghana ou uma Compacta Massa de Consciência que impregna tudo. O leitor é, então, como alguém que nada e toma ar a cada braçada. As atividades, não importa o quão agradáveis possam ser, carecem do "oxigênio" da consciência do Eu, por assim dizer, e a cabeça tem que sair frequentemente de dentro da água para respirar. E, quando o leitor se torna um aspirante espiritual, aprende a ficar por mais tempo nesses intervalos. Por exemplo, aprende que deveria permanecer no espaço entre inspiração e expiração para dar uma inalada cheia do oxigênio do seu divino Eu. E, quando avança, aprende que também existe outro intervalo para respirar no espaço entre os pensamentos, onde o divino "Eu" mora em solidão, totalmente desprovido de qualquer atividade exceto a de ser completamente Bem-aventurado. E, quanto progride mais ainda em espiritualidade, aprende a morar nos intervalos entre duas percepções objetivas (no espaço entre a percepção do objeto A e a percepção do objeto B). Depois de ter recebido todo esse conhecimento e praticado adequadamente, aprende a ficar completamente na sua consciência do Eu por longos períodos de tempo. Depois, um dia, por meio da sua própria Graça, dá-se conta de que inclusive tudo o que não está nos intervalos, ou seja, percepções, atividades, pensamentos, etc., também são divinos por natureza. Isso é libertação final, porque ele não depende mais de concentrar a sua atenção nos intervalos entre percepções para experimentar Bem-aventurança. Pelo contrário, pode ser bem-aventurado inclusive durante as próprias percepções. Nesse momento, quando está completamente libertado, quando se tornou um jīvanmukta (alguém que está libertado em vida), experimenta Bem-aventurança a todo momento, não importa como estiver o corpo, não importa como estiver a mente, não importa como estiver a vida, etc. Isso é Jagadānanda ou a Bem-aventurança de dar-se conta de que Deus é todo o jagat ou universo. Essa é a maior Realização que um ser humano pode alcançar. Esse é o Estado de Paramaśiva.
Quando o leitor finalmente alcança Jagadānanda, experimenta o que o sábio Kṣemarāja (o Guru de Yogarāja) descreveu sucintamente enquanto comentava sobre o 11o aforismo da sua Spandanirṇaya:
"... मुकुरान्तर्निमज्जदुन्मज्जन्नानाप्रतिबिम्बकदम्बकल्पमनल्पं भावराशिं चिदाकाश एवोदितमपि तत्रैव विलीयमानं पश्यन् जन्मसहस्रापूर्वपरमानन्दघनलोकोत्तरस्वस्वरूपप्रत्यभिज्ञानाज्झटिति त्रुटितसकलवृत्तिः स्मयमानो विस्मयमुद्रानुप्रविष्ट इव महाविकासासादनाच्च सहसैव समुदितसमुचिततात्त्विकस्वभावो यो योगीन्द्र आस्ते तिष्ठति न त्ववष्टम्भाच्छिथिलीभवति तस्येयमिति सकलजगत्कम्पकारिणी कुत्सिता जननमरणादिप्रबन्धरूपा सृतिः प्रवृत्तिः कुतो निजाशुद्धिलक्षणस्य तद्धेतोरभावान्नैव भवतीत्यर्थः।" - "... mukurāntarnimajjadunmajjannānāpratibimbakadambakalpamanalpaṁ bhāvarāśiṁ cidākāśa evoditamapi tatraiva vilīyamānaṁ paśyan janmasahasrāpūrvaparamānandaghanalokottarasvasvarūpapratyabhijñānājjhaṭiti truṭitasakalavṛttiḥ smayamāno vismayamudrānupraviṣṭa iva mahāvikāsāsādanācca sahasaiva samuditasamucitatāttvikasvabhāvo yo yogīndra āste tiṣṭhati na tvavaṣṭambhācchithilībhavati tasyeyamiti sakalajagatkampakāriṇī kutsitā jananamaraṇādiprabandharūpā sṛtiḥ pravṛttiḥ kuto nijāśuddhilakṣaṇasya taddhetorabhāvānnaiva bhavatītyarthaḥ|" - "... (Depois de ter entrado em Bhairavī mudrā,) vê a grande multidão de objetos que surge no espaço ou éter da Consciência (e) se dissolve ali mesmo como uma longa série de múltiplos reflexos que aparecem (e) desaparecem dentro de um espelho. O melhor dos Yogī-s que, tendo quebrado todas (as suas) modificações mentais --tendo dissolvido todos os seus pensamentos-- instantaneamente —depois de mil nascimentos— por meio de um reconhecimento da sua extraordinária natureza essencial, que é uma massa de Bem-aventurança, permanece —mantém-se, não desiste do agarramento (do princípio do Spanda ou consciência do Eu)— espantado, (isto é,) como se tivesse entrado em Vismayamudrā --o mudrā do assombro--, repentinamente —devido à (sua) realização do Grande Desenvolvimento ou Expansão— experimenta o surgimento --lit. surgido ou elevado-- (da sua) genuína natureza real. Como (pode) "esse" vil caminho transmigratório (ou) pravṛtti --vida ativa no mundo-- que consiste na série contínua de nascer, morrer, etc. (e) causa tremor em todas as pessoas (ser) sua --desse grande Yogī--? Não é, devido à ausência da sua causa, caracterizada por "nijāśuddhi" ou "impureza inata" --o Āṇavamala--. Tal é o significado."
O sábio Kṣemarāja não poderia ter sido mais preciso na sua descrição do processo de libertação final. O seu comentário dá, de fato, libertação final, já que está repleto de Graça divina. O melhor dos Yogī-s, o glorioso jīvanmukta, abre a boca em Vismayamudrā (o mudrā ou gesto de assombro) devido à sua realização do Grande Desenvolvimento ou Expansão. Em outras palavras, ele experimenta o que Yogarāja descreve aqui como "o Rasa ou Seiva cheio do Incrível Deleite da Plena --não fragmentada-- consciência do Eu". É Plena porque não consiste em pequenos "eus", cada um com seus próprios desejos (p. ex.: eu quero isso, eu preciso daquilo, eu odeio isso, eu adoro aquilo, etc.), que são como gotas no gigantesco Oceano da divina consciência do Eu (Śakti). De maneira alguma! O divino "Eu" não é como esses pequenos "eus", que não fragmentados, e não plenos. Então, quando o leitor cumpre a extremamente difícil missão de se tornar um jīvanmukta, também se dá conta de que não há libertação, porque nunca houve escravidão. Inclusive alguns segundos do seu bem-aventurado transe equivalem a vidas inteiras cheias de felicidade normal. O que as pessoas comuns chamam de felicidade é exatamente como gotas do Néctar que emerge do seu próprio Ser, mas, no caso do leitor que se tornou um jīvanmukta, por ter adquirido acesso a todo o Oceano de Néctar, a sua Bem-aventurança é extrema como o próprio Paramaśiva. Essa realização está além das descrições e é, consequentemente, um assunto relativo à experiência. Tudo o que foi feito antes dessa grande realização é como o andar de um sonâmbulo. É isso que se sente: "O que estive fazendo antes?". Estava dormindo, espiritualmente falando.
De qualquer forma, deve haver uma certa regulação na sua Bem-aventurança, ou perderá o seu corpo físico no processo. Se isso acontecer, não será um jīvanmukta (um libertado em vida), mas sim um videhamukta (alguém que abandonou o corpo após alcançar a libertação final). Essa é a razão pela qual, quando o eminente jīvanmukta deixa o corpo físico, esse estado é denominado Mahāsamādhi ou Grande Transe, porque até a última limitação (o corpo físico) finalmente foi embora, o qual libera Bem-aventurança a cem por cento! Então, nenhuma regulação é necessária, devido à ausência de um corpo físico.
Muito bem, chega de revelar esses segredos por enquanto!
7 Sphurattā é uma palavra que, se for traduzida literalmente, fica estranha: "O estado de alguém ou algo que palpita ou cintila". Como essa tradução é inconveniente, como você sabe, é traduzida como Consciência Cintilante ou Consciência Pulsante ou ambas (Consciência Cintilante e Pulsante) para ser o mais claro possível. É um nome de Śakti (o Poder do Senhor). O sábio Kṣemarāja fala sobre os muitos nomes de Śakti no início do seu Parāprāveśikā. E é a presença dessa Śakti cheia de Deleite Supremo no Grande Senhor que o torna distinto de um mero objeto inerte tal como um cristal, etc. Então, enquanto o cristal é pleno e completo, o glorioso Senhor é Pleno e Completo já que experimenta uma Grande Bem-aventurança que provém de um descanso ou repouso no Seu próprio Ser. Essa é a diferença entre Ele e uma mera coisa inerte. Além disso, uma coisa inerte é manifestada pela Sua Luz, enquanto o mesmo não é verdadeiro com referência à coisa inerte, isto é, nunca pode manifestar o Senhor Supremo.
Abhinavagupta também disse sobre esse Senhor: "Ele está repleto dos instrumentos da Consciência volitiva". De qualquer forma, Yogarāja afirma que essa frase significa o seguinte: "(Ele é) certamente a natureza essencial dos (Poderes de) Vontade, Conhecimento (e) Ação", o qual parece redundante e contraditório, porque, se a Consciência é "volitiva", é bem óbvio que contenha "Poder de Vontade". A explicação de tal descrição está no fato de que, muito frequentemente, o Poder de Vontade é atribuído primordialmente a Śakti (tattva ou categoria 2) em vez de a Sadāśiva (tattva ou categoria 3) --Consulte a Tabela de Tattva-s para mais informação sobre essas questões técnicas--. Sadāśiva está certamente repleto de Poder de Vontade devido à inerente Vontade presente na própria Śakti, que é a origem desse terceiro tattva (Sadāśiva). O que eu disse é bem óbvio a partir da leitura de escrituras como o Ṣaṭtriṁśattattvasandoha. Na segunda estrofe dessa escritura, Ela é chamada pelo autor de "a muito transparente Vontade", porque Ela, por meio do Seu grupo de poderes (śakticakra), está constantemente se tornando inumerável. Como resultado, não há nenhuma redundância ou contradição nas palavras do comentarista aqui. Dessa forma, o Mais Alto Senhor é a Essência dos Poderes de Vontade, Conhecimento e Ação (Icchāśakti, Jñānaśakti e Kriyāśakti), que são os que finalmente desenvolverão o universo inteiro para o Seu próprio Deleite. Em suma, por meio de "Eu desejo, Eu conheço e Eu faço", o Ser Supremo produz a manifestação universal. O leitor pode ser a sua própria manifestação universal ao seu redor e dentro da sua mente agora mesmo. Esse Senhor Supremo nunca é alguém além do leitor.
E, adicionalmente, o comentarista especifica que esse Senhor (o leitor) não é inerte como o Brahma dos śāntabrahmavādī-s --os seguidores da doutrina (vādī-s) que versa sobre o pacífico (śānta) Brahma (brahma)--. Ele se refere aos seguidores do Advaitavedānta ou Vedānta não dualista. Como refutei os princípios primordiais dessa doutrina por meio de alguns artigos no blog, p. ex.: Confusão entre Vedānta e Trika e Aprendendo a raciocinar adequadamente, não preciso explicar esse tópico aqui. Portanto, o Grande Senhor conhecido como Paramaśiva nunca é inerte como um mero objeto, mas sim o contrário: Ele é a Vida de todas as vidas, o Núcleo de todas as atividades e a Essência da manifestação universal, que não é nada mais do que uma exibição do Seu próprio Néctar. Esse é o significado.
8 O Senhor Paramaśiva está completamente cheio de infinitos poderes, que emanam a partir dos três principais: Vontade, Conhecimento e Ação. Todos esses poderes formam o célebre śakticakra (o grupo de poderes), que é responsável pela manifestação, manutenção e dissolução do universo. O Grande Senhor é certamente a Origem ou Fonte desse grupo de poderes, tal como estabelece Spandakārikā-s I.1:
यस्योन्मेषनिमेषाभ्यां जगतः प्रलयोदयौ।
तं शक्तिचक्रविभवप्रभवं शङ्करं स्तुमः॥१॥
Yasyonmeṣanimeṣābhyāṁ jagataḥ pralayodayau|
Taṁ śakticakravibhavaprabhavaṁ śaṅkaraṁ stumaḥ||1||
Louvamos esse Śaṅkara --um epíteto de Śiva--, que é a fonte ou causa do glorioso grupo de poderes, (e) por cuja abertura (e) fechamento dos (próprios) olhos (produz-se) a dissolução e o surgimento do mundo||1||
Yogarāja adiciona que esses poderes, por consistirem de nome e forma, tornam-se os intermináveis objetos deste universo. Ele também fala sobre Brāhmī e outros poderes ou deusas, que são brotos dos três Poderes principais de Vontade, Conhecimento e Ação. As deidades mencionadas são as dos varga-s (grupos de letras): a-varga (grupo de vogais) é presidido por Yogīśvarī (também conhecida como Mahālakṣmī); ka-varga (grupo de guturais) é presidido por Brāhmī; ca-varga (grupo de palatais) é presidido por Māheśvarī; ṭa-varga (grupo de cerebrais) é presidido por Kaumārī; ta-varga (grupo de dentais) é presidido por Vaiṣṇavī; pa-varga (grupo de labiais) é presidido por Vārāhī; ya-varga (grupo de semivogais) é presidido por Aindrī (também conhecida como Indrāṇī) e śa-varga (grupo de sibilantes e sonora aspirada) é presidido por Cāmuṇḍā. Para mais informação, ver Alfabeto sânscrito (disposição tradicional). E, se você quiser ler um estudo completo sobre o alfabeto sânscrito, leia isto: Primeiros Passos (4), Primeiros Passos (5) e Primeiros Passos - 1. É por isso que ele diz que Brāhmī e as outras deusas derivam da multidão de palavras; entendeu agora?
A palavra "paripūrṇam" na expressão "Anantaśaktiparipūrṇam" escrita por Abhinavagupta na estrofe em questão deriva de "paritaḥ pūrṇam", ou seja, o prefixo "pari" significa, na verdade, "paritaḥ ou paritas". E "paritaḥ ou paritas" significa "completo, em todos os lugares, totalmente", isto é, "completamente". Então, paripūrṇam realmente significa "completamente cheio", isto é, completamente penetrado por esses infinitos poderes mencionados pelo grande Abhinavagupta. E, como todos esses poderes surgiram a partir Dele, do Grande Senhor, finalmente descansarão Nele também. Essa verdade foi mencionada indiretamente em Spandakārikā-s I.2:
यत्र स्थितमिदं सर्वं कार्यं यस्माच्च निर्गतम्।
तस्यानावृतरूपत्वान्न निरोधोऽस्ति कुत्रचित्॥२॥
Yatra sthitamidaṁ sarvaṁ kāryaṁ yasmācca nirgatam|
Tasyānāvṛtarūpatvānna nirodho'sti kutracit||2||
Por possuir uma natureza --rūpa-- não velada, não existe nenhuma obstrução em nenhum lugar para Aquele no qual todo este universo descansa e a partir do qual se manifestou||2||
As coisas estão claras agora, não estão?
9 Essa Liberdade Absoluta (Svātantrya), também chamada de Śakti, que existe no Grande Senhor, é conhecida adicionalmente como Parāvāk (a Fala ou Palavra Suprema). Levantou-se uma objeção quanto ao uso da palavra Vāk (Fala ou Palavra) no caso da Sua Liberdade Absoluta. Por quê? Porque Vāk se divide, por último, em inúmeras palavras e, ao mesmo tempo, requer o yoga (que não significa "união" nesse contexto) ou uso de kalpanā (criação mental), isto é, não é necessário pensar para dizer palavras. Todos esses processos mentais e as respectivas palavras produzidas por eles são reais (existem) mas ao mesmo tempo fictícios (são inventados). Como, então, poderia o Mais Alto Princípio ser algo que é inventado por processos mentais? E como poderia a Sua natureza ser algo que se divide, por último, em inúmeras palavras, todas as quais surgem a partir da mente? Essa é a objeção.
A resposta para essa pergunta é simples: Yogarāja estabeleceu que o nome da Sua Liberdade Absoluta, que é a Sua essência, não é meramente Vāk (Fala ou Palavra), mas sim Parāvāk (Suprema Fala ou Palavra). Adicionando a palavra "Parā" ou "Suprema", a conotação é que a Sua Liberdade está acima de Vāk, a qual certamente requer yoga ou uso da mente para existir. Essa Parāvāk, pelo contrário, não requer nada para existir, já que a Liberdade pertencente ao Mais Alto Princípio é existe por si só. Além disso, o sábio Abhinavagupta torna esse ponto bem claro ao adicionar a expressão "Sarvavikalpavihīnam" - "Ele é livre de todos os pensamentos" para, assim, mostrar que Parāvāk não é uma mera Vāk sujeita a uma mente para criá-la.
Além disso, Paramaśiva é sempre nirvikalpa ou desprovido de qualquer pensamento, porque os pensamentos se baseiam na negação de uma coisa oposta. Por exemplo: "O estado de ser uma vasilha é assim", então, tudo o que não satisfizer os requisitos para ser uma vasilha, segundo essa premissa, não é uma vasilha. Dessa forma, os diferentes objetos são diferenciados na própria mente por meio da adição de delimitadores (avacchedaka-s). Outro exemplo: Essa mesa tem esse limite... aqui... e a vasilha que está sobre a mesa tem esse limite. Como resultado, a mesa parece distinta da vasilha que está sobre ela, pois a mente atribuiu um delimitador de propriedade (tabela, vasilha) a esses dois objetos. Na realidade, não há nenhuma razão para encontrar uma diferença entre uma mesa e uma vasilha, exceto por meio desse processo de delimitação produzido na própria mente. No entanto, nenhum desses processos de delimitação ou negação está acontecendo no Grande Senhor, que é Luz (Śiva ou Prakāśa) cheia de Supremo Deleite (Śakti ou Vimarśa), isto é, não existe nenhum Prakāśa (Luz) e Aprakāśa (não Luz) ao mesmo tempo. Consequentemente, não pode haver nenhum pensamento no Núcleo do Afortunado Senhor devido à ausência daqueles processos de delimitação e negação. Em suma, não há nenhuma exclusão em Paramaśiva, o que sempre o torna completamente livre de todos os pensamentos.
10 O que o contestador está tentando dizer é: "Se a coisa que é diferenciada ou excluída --delimitada, negada-- como não sendo a Sua Luz for realmente a Sua Luz (tal como declara Spandakārikā-s II.3), então como poderia essa coisa produzir simultaneamente diferença ou exclusão --delimitação ou negação--? Se isso for possível, essa coisa seria realmente um pensamento, o qual produz diferença ou exclusão. Como resultado, o Mais Alto Princípio não seria carente de pensamentos (vikalpa-s) como afirma Abhinavagupta."
A óbvia resposta para essa pergunta é que "essa coisa nunca existe na sua Luz!", ou seja, nada se manifestará "em oposição" dentro do reino da Sua Luz porque, se algo se manifesta, também é Luz. Da mesma forma, na Sua natureza essencial repleta de Luz, não há nada que se manifeste em oposição à Sua Luz, pois, se algo emergir aqui, no Ser... é sempre Luz. Portanto, o Grande Senhor (o leitor) é sempre livre de exclusões ou distinções na sua natureza essencial, no seu Ser. Em suma, Ele não contém nenhum oposto devido à Sua Plenitude.
Dentro do reino de vikalpa ou pensamento, existem muitos pares de opostos, p. ex., "vida-morte", mas, no próprio Ser, a vida e a morte são a mesma realidade, ou seja, a Sua Luz. Essa experiência sobrevém a um libertado desta maneira:
"Sou todas as pessoas que morreram. Sou todas as pessoas que vivem agora mesmo e que deixarão os corpos mais adiante. Tamém sou todas as pessoas que ainda nascerão. Todos os seus rostos são o Meu Rosto."
Essa é a exata experiência que tem um jīvanmukta ou libertado em vida. Obviamente, a descrição que dei é para que você entenda o seu estado de unidade com tudo... não que o jīvanmukta esteja repetindo tudo isso constantemente. De qualquer forma, ele se sente assim com relação à vida e morte, mas geralmente esconderá esse sentimento entre os paśu-s (os indivíduos limitados) para não perturbá-los. Esconderá não só isso, mas também todo o seu estado de libertação diante da grande maioria deles, pois a sua experiência de Bem-aventurança, se for mostrada plenamente em um nível físico, seria impactante para todos esses paśu-s. Imagine a savana africana repleta de animais vivendo como vivem normalmente --caçando, reproduzindo-se, etc.--, e, repentinamente, fazendo um barulho tremendo, uma grande e sofisticada aeronave fabricada por seres humanos aterrissa ali em meio a todos eles. Essa analogia é útil para entender por que um libertado geralmente está escondendo o seu verdadeiro estado de Bem-aventurança e Glória entre as pessoas comuns e inclusive entre os aspirantes, para que não experimentem perturbação extrema. Não estou brincando. Como o Ser é tanto o mais distante quando o mais próximo, Ele mora naturalmente em todos como "eles mesmos", mas, ao mesmo tempo, revela-se unicamente a um ser libertado. Esse é o Seu grande mistério. E quando esse Grande Senhor toca um jīvanmukta de formas específicas, o efeito da Sua extrema Bem-aventurança será impactante para o resto das pessoas ao redor desse jīvanmukta, pois não entenderão o que está acontecendo com essa pessoa da mesma forma como os animais na savana africana não entenderão o que é aquela grande aeronave. Muito bem!
11 E como o Mais Alto Princípio (Paramaśiva) está completamente desprovido de pensamentos, Ele é absolutamente Puro ou Imaculado. Ao mesmo tempo, visto que Nele existe Śaktisāmarasya ou um estado onde todos os Seus poderes têm o mesmo sabor, um estado de total equilíbrio em relação a todos os Seus poderes, onde o conhecedor e o cognoscível estão em equilíbrio total, Ele é conhecido como Pacífico ou Livre de agitação. Em vigília, os objetos (as coisas externas ou objetos cognoscíveis) escondem o "conhecedor" interno, por assim dizer, isto é, os objetos são predominantes e a pessoa esquece o seu divino "Eu". Em sono profundo, o conhecedor predomina sobre os objetos cognoscíveis, já que a experiência é totalmente subjetiva (é pertinente ao "sujeito interno" ou conhecedor). Inclusive em níveis superiores, p. ex., nos tattva-s 3 e 4 (Sadāśiva e Īśvara - Ver Tabela de Tattva-s para mais informação), também existe desequilíbrio apesar da inerente unidade, porque o Conhecedor (o "Eu") predomina sobre o Cognoscível (o "Isto") e vice-versa. No entanto, em Paramaśiva, essa agitação não ocorre, porque há total equilíbrio no Seu Poder ou Śakti, de onde emanam todos os poderes.
Finalmente, Yogarāja estabelece que Ele não é, no entanto, como um pedaço de pedra, que parece estar em equilíbrio mas carece do Seu Deleite Supremo. Como Ele está repleto dessa Bem-aventurança, nunca pode ser comparado a um pedaço de pedra. Esse assunto já foi explicado antes.
12 No final da sua descrição, Abhinavagupta declara que o Mais Alto Princípio é "layodayavihīnam" ou "desprovido de todo surgimento e dissolução", como Ele é eterno e constantemente presente. Em outras palavras, o tempo não tem nenhum efeito Nele. É o mesmo Ser agora como foi no passado e será no futuro. Então, não há nenhuma questão sobre um surgimento ou uma dissolução no Seu caso. E o comentarista adiciona que o universo é o universo (isto é, cheio de processos de criação e destruição), já que o seu Senhor é livre de todos esses processos. O fato de que o universo pode surgir agora e ser removido mais tarde mostra que o Mais Elevado Ser (a Fonte desse universo) é completamente desprovido de surgimento e remoção (dissolução). Por quê? Porque, se o Senhor do universo aparecesse e desaparecesse junto com o universo, existiria o problema de ter que explicar como então Ele poderia detectar que o universo aparece e desaparece. Além disso, com cada surgimento e dissolução do universo, também haveria surgimento e dissolução do Senhor, o que geraria o problema sobre o que estava aqui quando tanto o Senhor quanto o universo foram embora. Um Vazio absoluto? Isso não pode estar certo, porque o Vazio absoluto nunca pode existir na realidade, exceto como um conceito abstrato na mente, já que a sua existência não pode ser provada por nenhum meio. Se o Vazio absoluto existisse, não existiria ninguém o percebendo. Por quê? Porque se "alguém" está percebendo, não é Vazio absoluto, mas sim Vazio parcial. Como isso é tão óbvio, a existência do Vazio absoluto nunca pode ser provada!
Como esse Vazio absoluto não existe, o Senhor não pode estar aparecendo e desaparecendo da mesma forma que o universo. Se alguém afirmar que Ele está fazendo isso, essa pessoa tem que provar o Vazio absoluto (o estado onde Senhor e universo estão ausentes). De qualquer forma, como o Vazio absoluto é impossível devido à presença de quem tenta prová-lo, esse assunto não faz sentido. Expliquei o tópico chamado "Vazio absoluto" ou "nada absoluto" no meu artigo do blog denominado "Ignorância espiritual - Parte 4". Dessa forma, a natureza mutável do universo, isto é, o fato de que o universo está constantemente sujeito a criação e destruição, mostra que o seu Supremo Senhor é livre de criação e destruição, e que nunca muda de forma alguma. Essa é a maneira como esse tema é explicado. Muito bem, é suficiente!
Informação adicional
Este documento foi concebido por Gabriel Pradīpaka, um dos dois fundadores deste site, e guru espiritual versado em idioma Sânscrito e filosofia Trika.
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